Novamente, a questão da referência.
Volto a falar aqui de um assunto que quem me lê ou me ouve já presenciou muitas vezes. “Tudo é uma questão de referência”, diria o Dantas - ou o Einstein, de um jeito menos poético no qual E=mc². Independente do modo como escrevemos nosso pensamento, a importância do referencial é um fato (e o próprio exemplo acima, envolvendo o moço poeta e o moço cientista que dizem exatamente a mesma coisa de pontos de vista tão diferentes, já é contextualização suficiente. Mas, pra infelicidade de quem está lendo isso aqui, eu vou continuar).
E então chegamos ao lugar que eu queria começar, mas não comecei, porque uma introdução com citações é mais chique. Tem o livro do Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e então tem o capítulo LV (55, pra quem nãotáligado), nomeado “O Velho Diálogo de Adão e Eva”. Pra quem não leu o livro, leu e não lembra, leu, mas não chegou a esse capítulo, leu só da metade pro fim, ou leu e quer ler de novo, anexo ele abaixo:
CAPÍTULO LV / O VELHO DIÁLOGO DE ADÃO E EVA
BRÁS CUBAS ................................?
VIRGILLA ...............................
BRÁS CUBAS...................................................................................................................................................................
............................................................................................................................................................
VÍRGILIA.............................................!
BRÁS CUBAS .................................
VIRGÍLIA......................................................................................................................? ........................................
....................................................
BRÁS CUBAS.........................................................
VIRGÍLIA.......................................................
BRÁS CUBAS ................................................................................................................................................... ..................!....................................!....................
VIRGÍLIA.........................................................?
BRÁS CUBAS ....................................!
VIRGÍLIA ............................................!
Fácil, né?
Sinto-me na obrigação de abrir um parêntese imaginário pra dizer que “Memórias Póstumas...” é, muito antes do romance precursor do realismo, um livro de filosofias. Um livro no qual um capítulo com três palavras e três símbolos gráficos sugere pensamentos e teorias muito mais complexas e longas do que outros livros de 567 páginas. Então fecho o parêntese.
Voltando para o FACIL, NÉ? É, fácil. Pelo menos para a maioria dos adolescentes que foram forçados a ler tal obra quando se deparam com uma página assim, garanto que o primeiro pensamento que vem a mente é “Nossa, que fácil, que perfeito. Uma página a menos...” e então folheiam o livro até o final, fazem uma rápida operação matemática e concluem “Agora faltam só 104 páginas...”. Desse total de jovens, 80% continuam a leitura, ignorando o capítulo do Diálogo e seus maiores detalhes. 15% questionam-se quando a validade do capítulo: “Será que existe algum significado por trás disso? Aposto que é uma metáfora... ou seria uma analogia? Adão... Eva... Bíblia, certo?”, concluem: “Tanto faz” e continuam, incansáveis, a leitura por mais 104 páginas. 5%, com alguma margem de erro, abandona as 104 páginas em cima de alguma estante, abre um editor de texto no computador (não digo Word aqui pra não fazer marketing gratuito pra Microsoft, ok?) e escreve um texto qualquer sobre como três sinais gráficos e três palavras podem ter significados diferentes dependendo da referência.
Agora, observando os dados acima, qual o total de jovens que lê os jornais A e B? (piadinhaparavestibulandos,ignorem).
Get back. Falava – ou melhor, digitava – sobre como a Referência (agora com letra maiúscula, substantivo próprio e único) pode influenciar alguém que lê o capítulo do Diálogo.
Farei suposições.
Se um físico lesse tal capítulo e então tivesse que explicá-lo, diria que o diálogo em questão se passa no vácuo. Que ele é uma alusão à origem do universo, onde não existia matéria, apenas o nada. E por ser o som uma onda mecânica, não se propaga no vácuo. Por isso os pontinhos, simbolizando o silêncio – ou melhor, a ausência de som.
Se quem lesse fosse na verdade um poeta romântico, logo imaginária um poema ainda mais romântico, com uma Vírgilia mais que virgem e um Brás Cubas sozinho, amargurado, tísico e desiludido frente a um amor impossível. Diferente do que seria imaginado por um poeta barroco, que enxergaria – sem o menor esforço – dois quartetos e dois tercetos no lugar das reticências, antíteses e paradoxos e hipérboles e hipérbatos, tudo muito junto, dividido em estrofes com a métrica perfeita em versos decassílabos.
Se fosse um filósofo, argumentaria que você, mero leitor, está incrustado no mundo das sombras, ignorante quanto ao significado do Diálogo, e que ele, político pensante, abonado pela sabedoria, clareza e pelas idéias, trar-te-á à clareza. E então passaria as próximas quatro horas trabalhando a difícil tarefa de tirar-te da caverna, utilizaria todos seus argumentos dialéticos e sua retórica para realizar a árdua e digna tarefa de te elucidar, enquanto você só consegue pensar em o que vai comer no almoço e quanto terá que pagar para calar a boca do velho beberrão.
Se fosse um estudioso das letras e de Machado diria que o capítulo do Diálogo é um questionamento do autor quanto à forma tradicional de expressão, que falta a ela a capacidade plena de levar o leitor aos verdadeiros sentimentos das personagens, que essa preocupação toda levou Machado de Assis à "subverter a forma para adaptá-la ao conteúdo que deseja transmitir" e que, na realidade, o capítulo descreve o auge da baixão entre Brás Cubas e Virgília, protagonistas da obra em questão.
Eu, particularmente, não querendo me igualar a qualquer um desses mestres citados acima e muito menos esnobar o grande escritor que foi Machado de Assis, ouso dizer, em toda minha insignificância, que o Diálogo foi um daqueles surtos de falta de criatividade que os gênios têm de vez em quando, e que por mais que tentem, não conseguem escrever nada, as palavras não vêm. Logo, na falta das palavras, Machado preencheu as linhas que faltavam com nada menos digno do que pontos. Mas, como eu disse cinco parágrafos atrás, são apenas suposições.
Fim (das suposições).
Então, concluindo (porque nada mais lindo e óbvio do que começar uma conclusão com "concluindo", não é mesmo, minha gente?), ou melhor, ligando os pontos. Tudo é uma questão de Referência. Tudo mesmo, desde a velha história do "Estou parado ou estou em movimento?" resposta correta: "Depende, em relação a quê, brow?" até um capítulo feito somente de três palavras e três sinais gráficos na obra inauguradora do Realismo no Brasil. Dependendo do ponto de vista, as reticências se transformam naquilo que for mais próximo da realidade de quem as interpreta, cada referencial enxerga uma face delas e as faces são da quantidade que teu pensamento permitir, arrisco-me a dizer, infinitas. E digo mais (porque toda boa dissertação termina deixando um assunto para a próxima), nossas Referências vão ser diretamente influenciadas pelo meio em que vivemos. As ideias que nos cercam definem muito mais nosso Referencial do que nós mesmos... mas aí já entramos no Naturalismo e Naturalismo não cai no simulado. Então, até a trimestral.
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