4.8.10

i'm home

olho por cima do computador e vejo a prateleira vejo o escuro entre as tábuas da prateleira me impedindo de encontrar seu fundo vejo aqueles dois olhos vermelhos me fitando de cima da madeira se movendo percebendo minha atenção e correndo para a direita. fico assustada fico morrendo de medo tenho vontade de gritar por socorro mas me dou conta de que estou sozinha no vigésimo andar e ninguém vai me ouvir. desligo tudo pego minha bolsa pego as chaves abro a porta fecho a porta tranco a porta minha bolsa pego minha bolsa pego o elevador estou na rua. respiro fundo quero o ar quero a liberdade que só aquela cidade mais cinzenta que o normal pode oferecer a liberdade dos prédios velhos e do cimento e da calçada. caminho pela calçada caminho pelo cimento. a liberdade dos vãos entre os prédios velhos da sombra no vão entre os prédios velhos a sombra entre as paredes de concreto me impedindo de encontrar o fundo do beco e olho procurando pelo fundo do beco e vejo centenas daqueles olhos vermelhos me fitando percebendo minha atenção. e agora são milhares e eles não se movem pra direita se movem pra frente e eu caminho mais rápido e vejo os olhos saindo da penumbra da sombra na minha direção e vejo suas e seus dentes afiados e seu pêlo cinza e nojento e caminham na minha direção calmamente como se aquilo fosse premeditado como se eles raciocinassem como se eu fosse a presa e eles caçadores estrategistas. começo a correr o scarpin preto machucando meu calcanhar e dói e eu corro do mesmo jeito e aqueles olhos horríveis naquele corpo nojento caminham mais rápido atrás de mim pela calçada de cimento atravesso a rua deserta só eu e a noite e um milhão de olhos vermelhos me perseguindo enquanto eu corro o mais rápido que posso e parece que nunca é suficiente e eles correm mais rápido com suas patinhas cor de rosa pegajosas atrás de mim no cinemento. meus pés doem não consigo pensar na dor não consigo pensar só a imagem daquelas criaturas me alcançando com seus dentes e seus rabos longos meus pés doem eu corro. pego minha bolsa pego a chave da porta cadê a chave da porta? por que eu uso essa bolsa tão grande? eles estão cada vez mais próximos e eu não acho a chave e pego a chave e a fechadura e a porta e eles estão perto muito perto quase alcançando meu calcanhar machucado do scarpin quando a porta abre e eu entro fecho a porta a cara de um deles esmagada na soleira. minhas costas contra a madeira o suor escorrendo por todo meu corpo. caio.

estou exausta e o suor no meu rosto tiro os sapatos meus pés pintados de escarlate da cor daqueles olhos o sangue saindo dos inúmeros cortes quero chorar a casa está tão vazia não vejo flores não ouço vitor ramil não sinto o cheiro do bacon todas as janelas estão fechadas. meus pés doem vou até a cozinha manchando o porcelanato de vermelho e abro a geladeira a lâmpada queimada tudo escuro sem comida tudo vazio exceto por aqueles dois olhos vermelhos me fitando bato a porta não! não aqui dentro não na minha casa não! que nojo! que nojo! imagino o rato nojento abrindo o pacote de pão e roendo as migalhas não quero não quero imaginar quero ir embora dali não me sinto segura nem dentro da minha própria casa eu tento gritar mas a voz não sai e não tem ninguém em casa. abro o armário procurando pelo veneno mas não consigo alcançar porque vejo os olhos vermelhos e eles me vêem e saem correndo do armário da pia e passam correndo pelos meus pés descalços aqueles ratos imundos sinto as patas frias e pegajosas tocando minha pele não grito minha voz não sai não consigo me mexer que nojo! que nojo. não acho o veneno quero a vassoura quero uma espingarda quero uma bomba não sei o que fazer são muitos muitos ratos e eles saem de dentro do meu armário. corro pra mesa corro pras cadeiras subo na cadeira estou segura na cadeira ratos não sobem em cadeiras meus pés doem meu estômago dói tenho fome e os ratos na minha cozinha os vermes imundos correndo animais imundos bichos imundos amontoando-se no chão da minha cozinha.

não sei quanto tempo fiquei na cadeira ainda é noite demais sinto muita fome e eles ficam me vigiando na minha cozinha estico a mão e dói meu braço e dóis minhas costas e eu estico mais e alcanço o armário de biscoitos e abro a porta de madeira e quero comida mas lá de dentro da penumbra ele pula e arranha minha cara e pula outro e emaranha-se nos meus cabelos e eu tento bater nos ratos imundos e eles não soltam e meus cabelos e meu rosto e eu tento gritar e minha boca o rabo dele na minha boca os bigodes nos meus olhos quero vomitar. estou no chão todos os ratos correndo na minha direção eu sou uma vítima deles jogada no porcelanato da cozinha e me levanto e piso em alguns quero me livrar preciso me livrar preciso fugir sair correndo. abro a janela e milhões de ratos entram na minha casa eu corro corro corro dentro da minha casa e eles correm atrás de mim. se eu alcançar a escada talvez a escada eu corro pela minha casa vazia os ratos nos meus calcanhares subindo pelo meu tornozelo roendo minha pele roendo tudo me atacando como se eu fosse uma migalha de pão. subo os degraus os ratos sobem comigo os dentes fundos de mais nas minhas coxas. entro no meu quarto a cama de casal feita e vazia e tudo escuro e um rato morto preso em mim e tiro o rato e tranco a porta e agora eu estou.

caminho até a cama quero minha cama quero meus lençóis limpos e aquele cheiro de lírio. quero minha casa cheia de lírios de novo ou pode ser o  cheiro do bacon quero vitor ramil tocando no meu rádio. e deito na minha cama deito no meu refúgio ali eles não conseguem chegar nenhum rato nenhum demônio consegue subir na minha cama nos meus lençóis limpos. mas eles sobem. eles saem de dentro dos meus armários e do ventilador e dos canos e das paredes e por baixo das portas e da pia do banheiro e do ralo do banheiro e de tudo de tudo saem os ratos milhões e milhões de ratos e sobem na cama e eu me escondo embaixo dos lençóis como quando eu era criança e me escondia pra espantar o medo do escuro me escondo e quero espantar os ratos e quero que eles me deixem em paz mas não. os ratos só sabem me atacar e querem me comer e sobem nos lençóis e entram nos lençóis e sobem em mim e eu quero gritar eu quero chorar não consigo a voz não sai e eles sobem em cima de mim com as patas frias e os rabos pegajosos e roem meus dedos roem meus tornozelos roem tudo cobrem meu corpo quero morrer quero morrer eles não deixam os dentes perfurando minha pele invadindo meu corpo ratos roendo todo meu corpo subindo pelas minhas coxas e não, por favor, não e entram em mim entram e me roem por dentro e dói e roem meu útero roem tudo entram por tudo minha boca minha garganta meus ouvidos meus olhos não consigo gritar eles me roem e dói e eu sangro e só eu e a penumbra. abraço a mim mesma.
















abro os olhos. você me abraça. estou em casa.









3 comentários:

Rodrigo Oliva Peroni disse...

AI MEU DEUS!!
DE ONDE TU TIROU ISSO!? QUE BRILHANTE!
Quehorror, nao vou conseguir reler(nem parar de roer as unhas tão cedo)

Carioca'. disse...

MARAVILHOSO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Carioca'. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
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