1.10.10

Cinemática


Estou farta do lirismo comedido, do lirismo bem comportado, do lirismo funcionário. Estou farta dos roteiros encaixotados, das idéias amarradas, das letras em courrier new 12. Estou farta da fôrma, da forma, de idéia sem acento, do ambiente antes dos personagens. Estou farta do herói e sua jornada, dos pontos de virada, dos atos e entreatos e seus truques baratos. Estou farta da indústria, da história sempre igual, do enredo sempre igual, da fotografia, do som, da imagem, do filme, da emoção sempre igual. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Estou farta dos próprios vocábulos, de todos os diálogos. Estou farta da falta de sorrisos, da falta de lágrimas, da falta de silêncios e seus ruídos. Quero ouvir os ruídos! Quero ver além da tela branca, da projeção, da luz, película, negativo. Quero ver além, quero um significado, uma mudança. Quero sentir uma emoção nova. Quero ser perturbada, não agüento mais essa passividade, esse olhar de espectador distante sentado na poltrona. Sentado na poltrona do cinema, sentado na poltrona do carro, o filme ali na frente, a vida ali na frente, o guri cantando brasil,mostratuacara e pedindo um trocado na janela do carro. Quero que assassinem a mocinha no meio do filme, quero espelhos paralelos e escadas infinitas, quero um cinema francês em chamas, quero antes o lirismo dos loucos, o lirismo dos bêbados, o lirismo difícil e pungente dos bêbados, o lirismo dos clowns de Shakespeare. Quero um cinema de loucos, um cinema de bêbados, um cinema sem planilhas, um cinema que seja vida e uma vida que seja um pouquinho mais cinema. Quero me emocionar, quero uma reação de verdade quando um velho é pisoteado no meio da rua, quero sentir sentir sentir de verdade em meio a esse turbilhão de informações e de cores e de luzes e de sons que enchem o espaço mas não preenchem nem dizem nada, absolutamente nada! Quero me surpreender, quero ver as laranjas se transformarem em esferas de ouro e quero ver o guri da sinaleira não precisando cantar cazuza. Quero um cinema que se importe, que não use tanta folha pra fazer seus projetos. Quero um cinema que acredite que possa surpreender e que acredite que possa mudar esta merda toda. Quero acreditar que posso mudar esta merda toda. - Não quero mais saber do cinema que não é criação.Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

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