6.9.11

Clarice e eu

Clarice toma conta do mundo. ela toma conta de uma fileira de formigas desde que era menina. elas andam em fila indiana carregando um pedacinho de folha, o que não impede que cada uma, encontrando uma fila de formigas que venha de direção oposta, pare para dizer alguma coisa às outras. meus olhos correm pela folha de papel com pressa, devorando cada palavra como se eu já as tivesse lido e relido mil vezes, como se eu soubesse o texto de cor e salteado, como se essa não fosse somente a segunda vez que abro o livro no ônibus indo pra casa. e do nada já não consigo continuar lendo, minha visão fica embaçada e sem que eu perceba o sorriso nos meus lábios se confunde com o mar de lágrimas escorrendo pela minha face e as pessoas me olham, como se soluçar aos prantos no fundo do ônibus agarrada a um livro fosse algo tão incomum. mas aí já não sou mais eu, não me importo com os passageiros. sou a menina debruçada sobre a fila de formigas, chorando enquanto meu irmão mais velho pisa nelas e dá gargalhadas. e eu choro e soluço e choro e engasgo como agora, as páginas brancas marcadas por gotas d'água. eu também tomo conta do mundo, Clarice, só não tomo conta de mim mesma. carrego ele em cima do ombro esquerdo, com todas as favelas e com toda a poluição e com todas as formigas. eu também sou impulsiva, eu também quero melhorar. eu entendo quando você fala em tortura e glória. eu sinto mais do que entendo, mas sentir é entender, não é? eu sei como é caminhar todos os dias até a casa da filha do livreiro, toda a esperança amontoada entre os dedos, no céu da boca, será que é hoje? faço analogias malucas, Clarice: imagino que o menino na fila do suco, aquele que faz meu coração pular da faringe até o estômago, é o livro do monteiro lobato que eu quero muito muito mesmo ler, mas não tenho dinheiro pra comprar. e então vou até a casa dela todos os dias, porque ela prometeu me emprestar amanhã, mas amanhã ela nunca pode, amanhã ela sempre já emprestou pra outra pessoa e toda vez que o menino da fila do suco me olha eu penso "será que hoje já é amanhã?" porque quem sabe, Clarice, quem sabe um dia a esposa do livreiro não abre a porta e compadecida por eu ir na casa dela todas as tardes durante três anos pedir o livro emprestado, quem sabe, Clarice, ela não me olha e diz: "e você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entende, Clarice?  Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse é tudo o que uma pessoa, pequena ou grande, pode querer.




trechos em itálico do livro Aprendendo a Viver, de Clarice Lispector. 





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