Olhei para a multidão ensandecida que me aguardava enquanto subia as escadas, carregado por alguns oficiais. Quantos será que eram? Dois? Três? Apenas um? Será que subi sozinho? Acho que caminhei das masmorras até o palanque de madeira por minha conta e risco, controlado por uma vontade muito mais poderosa que qualquer coação física. As imagens eram muito imprecisas, mesclavam-se na minha frente como que cobertas por uma espessa camada de vidro embaçado e só o que eu via era a multidão, seus milhares de rostos, todos iguais, neutros, desimportantes. Não fiquei com medo, conquanto meus olhos percorressem, desesperados, todas aquelas faces em branco, à tua procura. Este seria meu último desejo, se tivessem me perguntado: que entre todos aqueles orientais vestidos em suas roupas de inverno eu conseguisse identificar o teu semblante, com aquele ar de certeza, que me acalmaria, que me devolveria o oxigênio e faria essa sensação de sufoco acabar. Senti a corda raspando meu pescoço. Fizera frio nas masmorras. Não o frio russo, ao qual estávamos tão acostumados, mas um frio diferente. Era úmido e escuro e solitário. Eu sou acostumado ao frio russo. Numa das noites enquanto o vento entrava para dentro da cela pelas frestas entre uma pedra e outra lembrei do nosso primeiro dezembro juntos. Lembrei que caminhamos por entre as árvores ao longo de horas. Aí lembrei do fogo e dos teus braços e o do teu corpo me aquecendo e lembrei de ti me explicando como aquele tipo de vidro fabricado com restos de muskovitas nos manteria protegidos do frio. Gostaria de poder me perder naquelas memórias para sempre, mas ouvi o chamado do soldado japonês de pé ao meu lado me trazendo de volta à realidade. Uma mecha da minha franja caiu sobre meu rosto, os fios de cabelo loiros muito mais compridos do que eu estava acostumado. Fiquei com medo de que talvez você não me reconhecesse, caso me visse. Mas não seria melhor assim, para nós dois? Não seria melhor que mantivéssemos uma respeitosa distância medida em léguas? Que você vivesse o resto de sua vida como se eu nunca estivesse existido e eu vivesse o curto resto da minha com a certeza do teu desprezo?
E antes que meus olhos se fechassem eles te encontraram. Vi teu rosto cansado, a testa mais enrugada do que na minha memória. Te vi perdido entre aquela massa humana sedenta por sangue. Reconheci o sobretudo cinza, o cachecol (presente meu em 1942) e, mais do que tudo, reconheci teus cabelos escuros e a barba crescida e reconheci os olhos azuis que miravam a forca e me dei conta de como me doeu tua ausência todo esse tempo. Como a dúvida em relação ao teu amor havia me consumido as entranhas e destruído qualquer resquício de felicidade que pudesse me restar. Percebi que eu vinha morrendo aos pouquinhos, uma morte lenta e sofrida, a cada segundo de cada dia aprisionado naquela masmorra com a incerteza de que te veria novamente antes do fim. Sem saber se você me desprezava tanto quanto eu me desprezaria. Sem saber se você iria me perdoar. Se ainda me amava. Você me ama? Agora eu sei que sim. Sei que não é o amor fraternal dedicado à sua esposa e às suas filhas ou o amor sobrehumano que compartilhamos pelas nossas estepes. Sei que você ama a mim e só a mim como eu lhe amo. Seus olhos azuis nunca me confundiram, meu caro. Eles sempre foram a passagem mais clara para a tua alma e neles eu sempre pude ler todos teus pensamentos e sentimentos. E agora, ao fitá-los, eu tinha certeza de que não me culpava. Eu não precisava mais me preocupar por ter falhado como espião, por ter falhado como russo, como soldado, como homem. Falhei como teu colega ao ser capturado em território inimigo e mandado para as masmorras úmidas desta ilha imperial. Sei que mereço teu desprezo. Mas é que se eu tivesse a liberdade outra vez... E eu não falharia novamente. E viveríamos lado a lado, compartilhando a mesa durante as refeições e caçando durante o inverno. Mas não é a impossibilidade de viver do teu lado que me assombra. Não é nem mesmo a impossibilidade de viver, ou o fracasso após uma vida dedicada ao nosso país. O que me assombra, meu amor, é o medo de te perder. É a ideia desse adeus sufocado e distante. É saber que ao cerrar meus olhos nunca mais lhe verei. E por isso você chora, eu sei. Por isso os seus olhos azuis estão cheios de água, ainda que as lágrimas não escorram. Por isso eu enxergo tua alma dilacerada aos prantos, doendo tanto quanto a minha. E enxergo o reflexo nos teus olhos azuis. Enxergo os soldados e a corda e me enxergo sobre a caixa e enxergo ele se aproximando e eu sei que vou cair. Eu sinto muito, Górski. Eu me vejo refletido nos teus olhos. Eu me vejo refletido em ti. Eu vejo só a mim, quando meu maior desejo era ver nós dois. Adeus.
12.3.12
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