8.4.14

A Mulher Viajando Sozinha

para Fernanda, que vai desbravar o mundo

Sou mulher, tenho 21 anos e vim para a Europa estudar. E essa não é uma descrição incomum, não é mesmo? Conheci muitas como eu aqui. Conheci mulheres jovens que moram sozinhas em um país desconhecido no qual não conhecem o idioma, que estudam, que trabalham, que estagiam e que viajam por estas terras planas. Conheci mulheres que viajam de bicicleta todo dia. De trem, de carro, de avião, de navio. Conheci mulheres que caminham viajando e viajam caminhando. Conheci mulheres que viajaram da Europa para outros países. Conheci mulheres holandesas negras que fizeram um mochilão no Brasil sem falar uma palavra de português. Sozinhas. E amaram Salvador. Conhaeci mulheres que viajaram o mundo inteiro: que moraram na Itália, na Tailândia, no Vietnã e no Japão - e com duas filhas. Conheci mulheres que passaram seis meses na Europa, uma mochila nas costas, cada dia em uma cidade. Conheci mulheres que passaram 45 dias na Índia e lá foram sozinhas para o deserto do Rajastão. Conheci mulheres de 70 anos pegando um avião no aeroporto, só elas e suas bolsas. E o que tem de especial nisso?, você pode me perguntar, As pessoas viajam sozinhas por aí há milênios. E isso é incontestável. Afinal de contas as grandes viagens não foram inauguradas com as navegações há mais de 500 anos? E antes disso, e a rota da seda? e as tribos nômades? você pode me perguntar. O que tem de especial é que essa é a primeira vez que eu posso contar que vi uma mulher viajando sozinha e você vai me perguntar "tá, e daí?". Isso é o que tem de especial: o não-ser mais especial. A banalidade que inerentemente acompanha o comum. Nós, mulheres, pela primeira vez, viajamos sozinhas. Viajamos independentemente. Viajamos porque queremos. Para onde queremos. Como queremos. Viajamos para estudar os nossos estudos, viajamos para trabalhar e ganhar o nosso dinheiro, viajamos em busca do nosso grande amor. Viajamos para conhecer o mundo, para expandir a alma, para ver com os próprios olhos e andar com as próprias pernas. Viajamos para nos perder, para nos achar, para errar e para aprender a acertar. Pela primeira vez, em alguns milênios de História, nós estamos viajando e estamos fazendo isso sozinhas e isso é normal. E aí talvez você vá citar os nomes de algumas mulheres que já viajavam sozinhas no século XVIII. Provavelmente você vai trazer à tona o nome de Anna Leonowens, aquela inglesa que foi sozinha para a antiga Tailândia e sobre quem fizeram um musical e alguns filmes. Ou talvez você fale sobre Leni Riefenstahl, que andou por aí bem louca escalando montanhas e fazendo filmes. Ou quem sabe Amelia Earhart, a primeira mulher aviadora a voar sozinha sobre o Oceano Atlântico, segundo a wikipedia. E é verdade, mulheres viajantes já existiam antes de hoje, mas existiam enquanto exceção. E a excepcionalidade do gesto era tanta que elas se perpetuam enquanto ícones, são talvez as heroínas das histórias que contamos para nossas filhas. E devem, como precursoras, ser respeitadas. Mas eu chamo atenção: meu ponto aqui é outro. Eu quero que você tente perceber isso um pouquinho como eu percebo. Eu quero que você tente se colocar no lugar de uma mulher qualquer do século XX, que se quisesse viajar, para ir do interior da Inglaterra para Londres, por exemplo, precisava da permissão do seu marido. Ou das mulheres que ao viajar, viajavam condicionadas pelas vontades de seus companheiros e traçavam seus trajetos para acompanhá-los onde fosse importante para eles. Quero que você pense em todas as embaixatrizes, de Clarice Lispector a Vita Sackville. Eu quero que você, claro, se coloque no lugar da dona de casa do século XX, se for isso que a sua imaginação tiver trazido a tona. Mas, principalmente, quero tente ver o mundo pelos olhos de Virginia Woolf e Frida Kahlo, que não viajavam sozinhas, independentemente de serem Virginia Woolf e Frida Kahlo. E com isso em mente, quero que leia de novo o início dessa carta, quero que pense em mim e nas mulheres que conheci e nas mulheres que você conheceu e quero que pense na banalidade de nós viajando sozinhas por aí com nosso passaporte numa mão e a outra livre para segurar - ou não - a mão de quem quisermos e quero que você entenda que essa liberdade é.

Mas aí você pode perguntar: tá, mas por que é tão importante para a mulher viajar sozinha? Não seria muito melhor viajar acompanhada? O que é que ela vai fazer sozinha por aí? E aqui eu quero chamar a atenção para a ideia que eu tenho desenhado a respeito da ação de viajar. Pra quê viajar? A viagem é uma jornada, meu caro. Assim como a vida. E acho que o ato em si tem muito a nos ensinar, mas como eu estou no ano em que não faço listas, vou simplesmente deixar os pensamentos fluirem. Viajar é a única possibilidade que temos para treinar viver. Uma viagem é um experimento de laboratório, é a jornada da vida em pequena escala. É como se a vida fosse o exame final de cálculo, e as múltiplas viagens fossem os exercícios de equações diferenciais que fazemos ao longo do semestre. Mas viajar não é só treinar para viver, viajar também é viver em si. E não no sentido de coletar fotos, ou prender alfinetes num mapa para contabilizar o quanto do mundo desbravamos. Toda viagem é um oceano desconhecido de emoções, de vivências, de pessoas. É todas as relações que se pode travar, todas as conversas que se pode ter, todos os cheiros, sabores, gestos, toques. Viagens são texturas diferentes, são cores diferentes e no limite são o conhecimento infinito. E não somente em relação ao mundo exterior e material. A viagem é vida também para dentro da gente. Cada viagem é uma jornada espiritual de auto-conhecimento. É todos os pensamentos que cruzam nossa mente, são todas as conversas que temos com nós mesmas, são todas as mudanças pelas quais passamos enquanto indivíduo.

Viajar também é enfrentar medos. É criar coragem para errar. É aceitar se perder. É conseguir se desapegar das nossas inseguranças, do medo de sermos julgadas por aqueles que cruzam os seus olhares com os nossos na rua; é também conseguir se desapegar das nossas inseguranças e do mecanismo de defesa de julgarmos aqueles que cruzam os seus olhares com os nossos na rua. Viajar é exercitar a cada segundo o amor universal. É reconhecer a beleza em cada pedaço de vida e de história que cruza a nossa jornada e o milagre da coincidência dessas pessoas. Viajar é, mais do que tudo, [aprender a] estar aberta. Aprender a se expor.

E, com tudo isso, viajar sozinha é mais. E quando eu digo viajar sozinha eu não quero dizer necessariamente o ato de deslocar-se sozinha para algum outro lugar. Viajar sozinha é muito mais um estado de espírito do que a ação de exercer uma viagem solitária per se. E de modo algum eu quero incitar alguém a sair por aí mundo a fora somente com o seu próprio umbigo ignorando todas as possibilidades de companheirismo. A mulher viajando sozinha não é aquela que, necessariamente, viaja desacompanhada. Nem aquela que não estabelece relações interpessoais. A mulher viajando sozinha não é egoísta e não se acha "boa demais" para viajar com outras pessoas. A mulher viajando sozinha é a mulher livre. É a mulher que tem a autonomia para decidir viajar ao lado da companheira - ou do companheiro, ou das companheiras e companheiros. Mas é, essencialmente, aquela que não depende do outro para viajar. Que pode decidir viajar desacompanhada se essa for sua vontade. É a mulher que pode decidir. É aquela que escolhe viajar ao lado, por vontade própria e não por necessidade. A mulher viajando sozinha pode ir em um retiro espiritual para a Índia, ou pode ir fazer um mestrado no Japão, ou pode seguir o seu grande amor até a Alemanha. Ela é capaz de fazer o que ela quiser. A mulher viajando sozinha é capaz de tudo, e como ela quiser. Ela é capaz de viver.


Um comentário:

Fernanda disse...

Lucy, te acompanho desde o Smilez e hoje, tantos anos depois, me bateu uma saudade dos seus contos! Foi muito bom descobrir que você continua escrevendo desse jeito tão gostoso de ler.

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