7.10.15

a escola em mim

Noite passada sonhei que eu comprava uma mochila nova. Na verdade, sonhei que eu andava pelos corredores de uma loja em que várias mochilas, de estilos e cores diferentes, estavam expostas nas prateleiras, à venda. Tinham mochilas para todos os gostos e necessidades: de pano, de lona, grandes, leves, transversais, coloridas... Uma infinidade de modelos ao alcance de um toque. Fiquei crucialmente em dúvida entre uma de jeans azul e uma à tira colo, estilo carteiro, marrom. Jamais saberei qual das duas meu eu-sonhador teria escolhido, pois acordei antes que a compra pudesse ser efetivada. Mas o que me intriga não é isso. O que me intriga é esse desejo do meu inconsciente de comprar uma mochila nova justamente no momento da minha vida em que, pela primeira vez, eu não preciso de uma.

Eu tenho vinte e dois anos e destes, dezoito, foram vividos em função da escola. Ah, a escola. Eu não guardo memórias muito nítidas da minha infância - a maioria delas foram recriações posteriores a partir de relatos familiares. Mas as primeiras memórias que carrego são de uma menina destrambelhada, com óculos grandes e lentes fundas, subindo os degraus amarelos de uma escolinha que cheirava a sanduíche por todos os lados. Eu lembro com nitidez dos detalhes do pátio, dos corredores estreitos, da coleguinha que levava kiwi de lanche. Me recordo também dos livrinhos, do ábaco de madeira, da professora de cabelos crespos. E, claro, das mochilas.

Eu não sei como é a vida sem a escola. Eu não lembro o que existia antes do jardim de infância. Eu só sei quem eu sou a partir de como eu vivenciei os dias desde os meus quatro anos de idade e os meus dias, invariavelmente, giravam ao redor destas paredes amareladas e do cheiro de merenda e das letras e números e livros e canetas e mochilas e estojos e quadros e aulas e óculos e classes e de vez em quando computadores e provas. Até mesmo quando eu não estava na escola, a escola estava em mim. Eu era o tipo de criança que brincava de dar aulinhas para os primos; nos dias que eu tinha que faltar aula porque estava doente, eu ficava em casa fazendo exercícios de outros livros didáticos; até mesmo meus brinquedos eram brinquedos estudiosos: todos os ursinhos de pelúcia tiravam ótimas notas nas provas de matemática. Quando eu visitava a casa das minhas primas mais velhas - aquelas que já estavam se preparando para o vestibular e cursando cadeiras na faculdade - eu poderia passar horas manuseando seus cadernos e lapiseiras. Passar os dedos por aquelas páginas atiçava dentro de mim um universo de curiosidade e compreensão capaz de prender a minha atenção durante todo o jantar. 

O que essa relação de pertencimento ao universo escolar significou na constituição da minha personalidade? O que esta afeição pela escola diz sobre mim mesma? Por muito tempo, a resposta para estes questionamentos era simples, simplista e curta: eu era uma CDF. A despeito da conotação pejorativa que alguns colegas atribuíam ao termo, eu era uma CDF muito orgulhosa de ser CDF. Eu era responsável, organizada, inteligente, dedicada, estudiosa. Eu só tirava as maiores notas. Eu era tudo aquilo que o sistema escolar queria que eu fosse. Eu não gostava de barulho em sala de aula, eu achava que meus colegas eram preguiçosos e desrespeitosos. Eu sonhava com o dia em que seria possível ter uma aula do início ao fim sem a professora ser interrompida por crianças alopradas, descontroladas e seus berros que ecoavam entre as quatro paredes e dentro do meu cérebro. Eu também não gostava muito de educação física, ou de esportes em geral. Mas eu também não era muito boa neles. O que será que veio primeiro? Talvez eu não fosse muito boa em esportes justamente porque eu não gostava deles, ainda que eu acredite que minha falta de coordenação motora e os quatro graus de miopia tenham contribuído para que a ginástica e eu crescêssemos distanciadas uma da outra.

E no final de cada ano tinham as férias. E férias significavam apenas três coisas: praia, livros e a lista de material escolar para o ano que vem. Se por alguns meses eu conseguia me manter suficientemente ocupada imersa em mundos paralelos de aventuras imaginárias, lado a lado com os meus personagens fictícios favoritos, quando vinha fevereiro eu pouco me importava com o carnaval. A grande diversão era escrutinar a lista de materiais escolares recém chegada pelo correio e planejar os cadernos, a borracha, o lápis, as canetinhas, o estojo e, claro, ela, a mochila. Como eu adorava passar horas na papelaria! Escolher cada detalhezinho, cada peça que iria me acompanhar durante mais uma série, mais três trimestres, mais algumas centenas de dias letivos e seus professores com suas aulas e temas de casa. Eu apreciava profundamente aquele momento, aquele novo início. A escola me recebendo de braços abertos para mais um começo. As férias sempre foram um intervalo. Um período passageiro entre dois pedaços de vida real. As memórias das tardes de verão deitadas no sofá acompanhando as aventuras do Harry e da Hermione não são uma lembrança da vida sem a escola. São uma lembrança da vida se preparando para retornar à escola.

O êxtase do início do ano letivo e a empolgação com a compra dos cadernos e das mochilas foi, com o tempo, atenuando. Depois de dezoito anos escolhendo a lapiseira mais anatômica, confesso que a magia diminuiu. Um caderno qualquer serve, e pode ser esse mesmo que a gente ganhou de brinde em 2012 e ficou esquecido no fundo da gaveta. E mochila, ah, mochila a gente usa qualquer uma. Dá pra revezar, as pilhas delas acumuladas no armário são suficiente. Grande parte desta transformação veio com a entrada na faculdade. Mas ela foi só uma transformação superficial. Sair da escola e entrar na faculdade não consistiu uma ruptura. Pelo contrário, a faculdade era a continuação natural da trajetória de estudos que eu tinha começado a percorrer lá atrás. Algumas coisas mudaram, claro: os anos letivos foram substituídos pelos semestres; o entusiasmo da lista de materiais escolares abriu espaço para as súmulas das disciplinas e a encomenda de matrícula; as viagens de férias tiveram destinos mais longínquos, e as aventuras das crianças bruxas ficaram na estante enquanto a filosofia ficcional do Kundera era carregada para cima e para baixo; o sonho das aulas em que os professores falavam sem serem interrompidos pelos colegas finalmente se materializou. Mas, detalhes à parte, a essência permanecia a mesma. Minha vida continuava girando em torno da escola. Só que essa, assim como eu, tinha crescido - e agora chamava-se universidade. Foram doze longos semestres andando com ela, para ela.

Para algumas pessoas a escola é só mais um dos muitos elementos que passa pelas suas vidas. Para algumas pessoas, o mundo não gira em torno das aulas e dos temas de casa - ou das palestras e dos artigos. O universo dessa gente é um constelação em que a estrela-mor, o sol radiante, é a própria pessoa, o indivíduo em sua totalidade, e cada um dos muitos astros e planetas e cometas orbita por aí originando a constelação da vida. Diversa, heterogênea, complexa, colorida. Para outras, a escola e sua extensão universitária é uma ponte. É a construção que conecta a infância, o mundo lúdico das brincadeiras e do faz de conta, à idade adulta, o mundo azul e cinza dos escritórios e do trabalho e da vida real. A faculdade é apenas um protocolo a ser cumprido. O que realmente importa não está entre estas quatro paredes e suas mesas e cadeiras. O que realmente importa está lá fora, entre outras quatro paredes e outras mesas e cadeiras. E tem ainda aquelas pessoas que vêem na academia a melhor maneira de exercerem suas potencialidades. São os intelectuais assumidos, aqueles que aprendem e apreendem o conhecimento e se sentem em casa ao redor dos livros e dos artigos e da pesquisa. A universidade não é uma continuação da escola. Ela é um começo novo, completamente distinto, é um outro ambiente, um outro universo. Ela é só o primeiro passo para a vida acadêmica porque depois dela virão o mestrado e o doutorado e o estágio docente e a docência em si. Obviamente, estes três tipos ideais de pessoas não existem. Eles são meras projeções do papel que eu imagino a escola-universidade possa ocupar nas nossas (minha?) vidas. Escola-constelação. Escola-ponte. Escola-academia. 

Eu estou presa em algum lugar no meio destes três significados de escola e não consigo encontrar uma porta de saída. Ao invés disso, eu fico olhando pela janela. Eu olho para o quintal e penso na horta e na composteira que eu queria tanto construir. Eu olho para a pilha de livros e penso nas histórias que eu queria ler; penso nas peças de teatro que eu queria assistir; nos filmes pendentes na minha lista. Eu penso também nos projetos que eu queria realizar, nos poemas e nas personagens criadas pela metade. E aí eu olho de volta para dentro das quatro paredes e penso em como estes dezoito anos não foram o bastante para me preparar pra vida lá fora. Eu me questiono se existe uma vida lá fora, e como ela é, que cheiro ela tem. O que significa viver sem ter que chegar em casa e ler um texto para o dia seguinte. O que significa a ausência de obrigações e deveres curriculares. Como é a rotina sem os temas de casa, sem acordar cedo para ir pra aula aprender algo novo. Sem os colegas, sem ter que estudar para as provas, sem ter que provar para mim mesma que sou capaz de me destacar academicamente e escrever artigos e tirar as melhores notas.

Eu tenho vinte e dois anos e destes, dezoito, foram vividos em função da escola. Eu não sei o que é a vida sem a escola. E a expectativa de chegar as férias e não ter uma lista de materiais escolares nem uma razão para escolher uma mochila nova me deixa sem chão. Eu não sei quem eu sou fora da escola, eu não sei quem eu quero ser, nem como eu posso me tornar essa pessoa que eu nem sei como é. Eu preciso me desescolarizar, me reinventar estrela-operária-filósofa, me redescobrir em todas as minhas potencialidades e desejos e anseios. Encarar que essa estrada percorrida precisa por enquanto chegar ao fim, nem que seja para aprender uma nova maneira de caminhar por ela no futuro. Eu preciso aprender a viver em plenitude pra que se um dia eu for voltar para a escola pra que eu a enxergue como ela realmente precisa ser enxergada: uma mera instituição, as quatro paredes e as mesas e as cadeiras, e não como esse labirinto de correntes que me prendem de cabeça baixa e mãos atadas a um lápis e um dever pontual. A vida é um oceano em imensidão e nadar precisa ser um prazer, leve e fácil com o corpo entregue ao ritmo da correnteza, dançando com as ondas - e não esse bater de braços e pernas cansativo que me deixa esbaforida e sem fôlego, exausta, como se eu pudesse me afogar a qualquer momento, me remexendo alucinada em direção a um horizonte irreal que muda de direção a cada braçada.




Um comentário:

Fernanda disse...

Lucy, eu sempre me identifico com você. Eu era exatamente assim quando criança: a empolgação com a lista de materiais, as brincadeiras que envolviam escola (eu dava aulas, em uma lousa, para todas as minhas bonecas).
Me identifiquei tanto que me bateu uma dúvida: cá estou eu, terminando o mestrado, começando um doutorado e me inscrevendo em outra graduação. Mas será que eu tenho uma dependência do ambiente escolar que não identifiquei, e que está influenciando minhas escolhas? Vou pensar a respeito.
Continua escreveno! Você é ótima!

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