23.10.14

o aquário ao redor

Vivemos dentro de um aquário. Todos nós. Alguns aquários são maiores e de tão grandes nos fazem crer que estamos no oceano. Outros não. Outros são bem restritos, com suas bordas de vidro, ainda que transparentes, bem demarcadas. Por vezes saímos do nosso aquário e, sentindo o desconforto de quem é peixe fora d´água, abaixamos a cabeça, cruzamos os braços, vivenciamos a vulnerabilidade e buscamos retornar o mais rápido possível para a nossa zona de conforto. Outras vezes nos deparamos com sujeitos inesperados ocupando o mesmo espaço nosso, gente que costumeiramente não entra em contato conosco. Nestes casos, a sensação de desconforto é tão ou mais forte. O aquário ao redor com as suas barreiras de vidro invisíveis separa as diferentes realidades, criando a falsa sensação de liberdade dentro de cada um de nós e segregando os espaços que vivenciamos.

A reflexão acima foi pensada quando saí da sala de cinema da Usina do Gasômetro, após a sessão de "Se Essa Lua Fosse Minha" - curta-metragem exibido no primeiro dia da 12ª Edição do Festival Diálogo de Cinema. A história contada no curta é uma das mais singelas e corajosas que tive a oportunidade de conhecer nos últimos anos. É corajoso porque é resultado do esforço de transpor as paredes destes aquários. E é singelo porque faz isso com tamanha delicadeza e respeito ao outro que eleva a ideia de empatia para novas fronteiras.

O "documentário" é sobre um grupo de moradores de rua que comunicam suas histórias pessoais, suas preocupações e suas vontades para uma câmera que, de tão sútil, passa por vezes desapercebida. O filme de Larissa Levandowski, produzido em conjunto com um grupo de colegas para o curso de Realização Audiovisual da Unisinos, rompe com todos os estereótipos sobre "documentários com moradores de rua" e sucede em apresentar a realidade daqueles indivíduos através de um novo olhar, que não é nem o de piedade nem o de mistificação. Ao estabelecer um contato quase-lúdico com alguns moradores, o filme também cruza as fronteiras da própria categoria de documentário, em que os entrevistados viram personagens e atores com voz própria. A reação do público não poderia ser melhor: quem assiste ao filme se diverte e, ao mesmo tempo, é convidado a refletir sobre questões sociais que, muitas vezes, acabamos por ignorar.

Além de lidar com a temática da segregação espacial, "Se Essa Lua Fosse Minha" também toca em outros dois pontos essenciais de serem pensados na atualidade: a questão da destruição ambiental e do direito à cidade. O discurso ecológico é transmitido de forma muito incisiva e clara pelos persoangens do filme. Muitos deles trabalham com reciclagem, explicou a diretora, e todos eles demonstram uma preocupação com o estado catastrófico de caos ambiental que tinha de ser incluída na versão final. A consciência ecológica está encrustada o âmago daquela comunidade e, por isso, é transmitida para o espectador de modo tão incisivo.

O segundo ponto levantado pelo filme, este de modo mais indireto mas nem por isso menos importante, é a questão da reforma urbana e da gentirficação. Ao trazer um relato de dentro de uma comunidade tradicionalmente segregada do meio urbano, o filme questiona as ideias pré-concebidas que guiam a maior parte das nossas políticas públicas de urbanização. O lugar onde os personagens moram é mostrado em sua essência como um espaço criativo, que germina cultura, por onde caminham e interagem indivíduos autônomos e ativos. Conforme explicado por um dos personagens, a rua onde eles moram é uma rua muito divertida, não é como as outras ruas que são chatas e em que nada acontece. Esta imagem orgânica contribui - e muito - para desmistificar a noção de que espaços públicos localizados à margem da sociedade burguesa e das instituições de mercado são destituídos de valor próprio. No lugar disso, "Se Essa Lua Fosse Minha" abre uma janela para pensar novas formas de interação com estes aquários, sem a intenção civilizadora que permeia a maioria políticas sociais e que busque uma construção conjunta baseada no diálogo e no aprendizado mútuo.

A obra é também exímia nos quesitos técnicos, da precisão de cada enquadramento à "tropicalista" direção de arte. O aperfeiçoado conjunto da produção garante que o conteúdo possa ser entregue ao público de maneira leve que agrada os olhos do espectador, mas que ousa e inova, sem se deixar recair em uma zona de segurança pouco criativa. Não é à toa que o filme já foi premiado em dois festivais (Gramado e São Paulo) e que, agora, está indo desbravar as terras do outro lado do Atlântico para concorrer no Festival Internacional de Filmes de Rotterdam. Acredito que este seja o início de uma longa série de justos reconhecimentos dados a um projeto artístico, de forte cunho social, criativo e extremamente honesto. Cabe torcer para que, a mesma energia que motivou os estudantes a cruzar as paredes invisíveis para entrar naquele "aquário", contagie outras pessoas, outros estudantes, e que mais projetos, com a mesma coragem e delicadeza, sejam gestados nos mais diversos campos do conhecimento e das artes.



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