1.4.15

Segunda-feira, 07hs 02min

Era sete horas da manhã de segunda-feira e no banco de trás de um taxi Karina estava prestes a chorar.

Do alto do viaduto a visão da cidade de São Paulo se fazia caoticamente maravilhosa. A sinfonia de motores e seus roncos entrelaçados com as estridentes buzinas se confundia com o barulho do formigueiro de pessoas se cruzando e se desviando com passos ligeiros, atravessando o viaduto. De baixo daqueles pés, o asfalto e de baixo do asfalto o bloco maciço de automóveis colados um ao outros por partículas de fuligem e monóxido de carbono. 

Mais uma vez, a Vinte e Três de Maio se metamorfoseava em monstro. No amanhecer das segundas-feiras e nos quatro dias que a seguiam aquele trecho da cidade rugia desfigurado. Um Leviatã que crescera demais e agora já não cabia na redoma de vidro que o cercava; lento e pesado se arrastava para frente, a borracha rasgando o asfalto, seus corpos betuminosos em fricção, o petróleo em interminável coito com o petróleo, levando ambos à exaustão. Como quem grita na face de Deus denunciando que a velha profecia revelava-se falsa; quanta inocência do velho acreditar que tudo vinha do pó e para o pó retornaria. Aqui, todos os começos e todos os finais só existiam em um único lugar, todos os caminhos nascendo e morrendo inesgotavelmente de uma única fonte viscosa e negra concebida e gestada há mais de cem milhões de anos. 

O mesmo petróleo que agora derretia no rosto de Karina. Transmutado em maquiagem, a crosta bege se desfigurava pelas suas bochechas, pingando de sua testa carregada no útero das gotas de suor, dragadas para baixo pelo núcleo da terra, todas as coisas retornando para o lugar de onde tinham vindo, escorrendo dos seus olhos, pelo seu pescoço, em direção ao até então imaculado colarinho branco que agora trazia consigo as marcas da guerra de Karina contra o Leviatã. A derrota infligida sobre a moça como um bisturi que lhe perfura o peito. A despeito dos esforços do ar-condicionado cuspindo vento refrigerado a menos de vinte graus, a ansiedade misturada à angustia era um vulcão transbordando no esôfago dela e queimando toda sua garganta, a azia subindo até sua alma em febre de quarenta graus.

Era o primeiro dia de trabalho de Karina e ela estava atrasada. O taxímetro fazia as vezes de cronômetro, o coração dela palpitando em taquicardia, prestes a rasgar sua pele e libertar-se daquela carne rosada a qualquer momento. Sua mandíbula trincada, os dentes triturando uns aos outros, com a força de quem carrega uma granada feita de chumbo nas costas e percebe que não terá forças para continuar segurando a bomba, mas que insiste em não se dar por vencida até o segundo fatal do esgotamento. Os olhos cravados em sua face como duas pedras preciosas, o azul cobalto lentamente desvanecendo em cinza, pairando sobre duas covas roxas na face virgem, estuprada pelas primeiras olheiras, o sangue escuro escorrendo por canais de varizes que se formavam na sua jugular, bombeando doses cavalares de cortisol para todo o seu corpo e chegando até a ponta dos dedos com as unhas compridas demais cravadas na palma da mão esquerda fazendo as gotículas escarlates vazarem e serem absorvidas pelo assunto do banco enquanto o Leviatã dava o golpe fatal: Karina levantou o olhar para observar o trânsito mais uma vez como quem espera ter o poder para acelerar o andar da vida e congelar a passagem do tempo, Karina levantou o olhar procurando por consolo e deu de cara com as entranhas do monstro, de baixo dos pés, de baixo do asfalto, de baixo do viaduto, subindo pelas paredes, à margem da auto-estrada, o amontoado de pessoas enegrecidas, da mesma cor das paredes, da mesma cor da imundice, da mesma cor da fuligem e do petróleo e da cidade inteira. O Leviatã se despia em frente à ela, seu escroto à mostra, derrotando a heroína mais uma vez, antes mesmo da sua jornada começar. Como quem pressente a chegada do colapso, a granada se liquefazendo em merda e escorrendo por entre os dedos de Karina, o soco no estômago lhe subindo a garganta e irrompendo para fora de seus globos oculares em água e soluços e desespero.

Era sete horas e trinta e um minutos e no banco de trás do taxi Karina chorava.

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