12.3.16

nosso pão e nosso café

É engraçado - engraçado? -, no mínimo curioso a maneira como nos sentimos tão à vontade na companhia um do outro. Dizem que as células do nosso corpo se renovam completamente a cada sete anos; se isso for verdade, é como se fosse a primeira vez que a tua pele toca na minha. E, para uma primeira vez, é estranhamente familiar. Talvez os cientistas tenham errado o cálculo.

Quando eu falei para Clara que eu e você iríamos nos (re)encontrar para um café - e possivelmente um cinema - ela me contou sobre a vez em que ela e a namorada se reencontraram depois de 90 dias sem se ver. A Clara desceu do avião apreensiva, o coração quase saindo pela boca e as mãos todas suadas.

- Eu parecia uma adolescente de treze anos prestes a perder o BV. Mas quando vi a Rita parada ali, segurando um buquê de gerberas meio desajeitadas, o cabelo raspado, morri inteira por dentro. Eu deveria sentir que tinha voltado para casa, mas era como se estivessem me atirando de um penhasco e todos meus ossos se estatelassem contra os rochedos.

Por isso, quando a tua boca encostou na minha bochecha de surpresa - eu perdida em devaneios e você, como de costume, uns 17 minutos atrasado - e eu senti o meu corpo relaxar, como se finalmente eu estivesse segura, confesso que racionalmente achei tudo muito, muito estranho. Foi atípico. O teu cheiro já não é mais o mesmo. No lugar da pele macia agora há uma aspereza que roça quase selvagem contra a minha. Cada um de nós está uns 10 quilos mais gordinho e uns 70 menos ansioso. Até o teu sorriso mudou. Se antes, ao sorrir, o teu olhar permanecia amargo, agora é como se todo o teu corpo sorrisse junto, genuinamente contente em me ver. Meu bem, ou você se tornou um ator muito melhor com o passar do anos ou essa é a primeira vez em que ao invés de interpretar personagens do Woody Allen estamos sendo nós mesmos.

Aí me pergunto se você também sente essa familiaridade toda ou se é apenas mais um dos meus devaneios. Não preciso dizer que depois daquele encontro enviesado no aeroporto, a Clara e a Rita terminaram. Anos depois, quando as duas se pecharam meio por acaso, a Rita confessou que também se sentiu absurdamente desconfortável com toda a cena. Ela não tinha conseguido engolir o novo cabelo ruivo da Clara e decidiu raspar a cabeça como forma de retaliação. Como se transmutar-se durante o namoro fosse um crime de guerra.

Enquanto isso, nós dois nos transformamos por completo. Viramos pessoas substancialmente diferentes - será? -, mas de alguma maneira conseguimos manter à flor da pele tanto o olhar de admiração quanto a vontade de estar junto. Você me diz que se ao menos um de nós fosse, naquela época, um pouquinho menos desequilibrado talvez estivéssemos agora completando oito anos de namoro. Mas de alguma maneira o teu hábito com a cocaína e o meu com todos os ansiolíticos atravancaram-se no meio do caminho.

Hoje a manhã é nublada e úmida e eu acabei de descobrir umas músicas novas - e menos deprimentes. Queria me perder no teu abraço. Mas sentada aqui no parapeito da janela, te vejo dormindo, e tenho certeza que essa é uma das imagens mais sublimes já vivenciadas por essas paredes. Tenho receio de me aninhar do teu lado e acabar te acordando com os meus movimentos bruscos. Se eu quebrar agora essa redoma de aconchego tenho medo de nunca mais conseguir colocar os pedaços juntos de novo. Uma pena que além de não saber falar eu também não tenha aprendido a arte do desenho, nem que fosse para registrar num cantinho dessa folha o que meus olhos agora enxergam e ter uma memória para contemplar no futuro.

E pensar que eu peguei esse papel e essa caneta para te escrever um bilhete dizendo que eu estava indo comprar café, só porque eu não queria correr o risco de que você acordasse e ao notar a cama vazia ficasse pensando que eu tinha ido embora. De novo.

Pois bem.

João,
Fui na padaria comprar café - e pão.
Eu já volto. Mesmo.
um beijo - dois beijos,
M.

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