29.5.16

Calle Florida, veintitrés

a gente já estava indo embora. já tínhamos pegado as nossas bolsas e estávamos a dois passos da porta, dei dois beijos e desejei uma boa noite, dando por encerradas aquelas 5? 6? horas de música e dança regadas a álcool e saliva. enrolei o cachecol no meu pescoço e vesti a jaqueta de couro enquanto uma das garotas me segurava pela mão e me puxava para fora da boate. e aí.

ela vinha caminhando na direção contrária, e como se impelidos por uma força maior, meus olhos buscaram os olhos dela e ali se amarraram. contando assim parece um daqueles momentos piegas de filmes românticos em que o diretor decide na hora da montagem colocar uma música instrumental estourada no fundo para que até os espectadores menos experientes entendam que aquele é um encontro que vai mudar a vida das personagens. mas não tinham espectadores naquela noite. era só eu olhando pra ela e ela olhando pra mim e eu indo embora daquela festa cheia demais e barulhenta demais e ela chegando pra ficar com um copo numa mão e uma pequena argola de prata no nariz.

as pessoas se cruzam o tempo todo.
as pessoas se encantam o tempo todo.
e as pessoas vão embora. o tempo todo.

mas não dessa vez. porque os segundos que se seguiram aquela troca de olhares foram tão inacreditáveis que.
caminhamos uma na direção da outra e ficamos ali, paradas, bem no meio do corredor. pessoas apressadas andando de um lado para o outro ao ritmo de alguma música qualquer. e aí ela estendeu o braço e tocou o meu ombro e eu disse a única coisa que passava pela minha cabeça naquele instante. eu disse: eu te conheço de algum lugar. o que pode soar como a pior cantada de todos os tempos, mas eu podia jurar que eu conhecia ela de algum lugar. ela sorriu. o sorriso mais encantador que já sorriram para mim. então lancei a segunda pior abordagem de todas e perguntei como ela se chamava.
- Luisa. Y tu?
- Me llamo Lucia.
e antes que eu pudesse coordenar o meu corpo para fazer qualquer outra coisa, perguntar qualquer outra informação, a manada de pessoas dançantes passando por aquele corredor empurrou ela para dentro e as garotas seguraram a minha mão e puxaram o meu corpo para fora e então estávamos na rua, o cachecol amarrado forte ao redor do meu pescoço, a fumaça do cigarro nos cercando em uma espessa e íntima nuvem, caminhando pela noite em direção a algum apartamento desconhecido. sem a Luisa.
olhei no relógio. em menos de seis horas eu estaria entrando em um avião e voltando pra casa, para uma terra provinciana menos fria do que aquela e que eu já nem lembrava mais qual cheiro que tinha. voltando pra casa e deixando pra trás o único momento que fizera meu coração bater mais forte. tínhamos recém dobrado a esquina quando eu me desprendi dos dedos das garotas, desejei boa noite, dei meia volta e corri na direção contrária de volta para a festa.
- Donde te vayas, Lucia? - Elas me perguntaram, metade preocupadas metade em um tom acusativo. Afinal de contas não era de bom tom passar as suas últimas horas na cidade longe das melhores amigas.
- Yo olvidé un par de cosas. Las encuentro en el ape. - Respondi aos berros, já longe.
Parei de frente à porta de entrada da festa com o coração rasgando meu peito, metade pela corrida fora de hora e mais da metade pela possibilidade de encontrar aquele par de olhos novamente. ou de não encontrar. eu estava bem no meio do processo de bolar uma desculpa qualquer para que o porteiro me deixasse voltar lá para dentro, quando a porta se abriu bem na minha frente e ali estava ela.
Luisa sorriu para mim, desceu os dois degraus que faltavam e disse.
- Donde queres ir?
minha vontade era de dizer: quero ir para todos os lugares, desde que seja contigo. mas como achei meio exagerado para um segundo encontro, apenas abri um sorriso - sorriso que viria a ser só dela - e sugeri que fossemos até o parque. ela perguntou se eu tinha uma bicicleta e eu falei que sim, mas que estava estacionada a algumas quadras dali. então fomos até a bicicleta.

foi assim que começara as minhas últimas seis horas em Mendoza.


Um comentário:

Fernanda disse...

Que delícia de história. Eu sempre me identifico...

Luciana, tenho que admitir que tenho um crush intenso por você, haha.

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